BAT, ex-Souza Cruz, infla dados para prometer empregos se vape for liberado
Empresa diz que dispositivos trariam 13 mil novos postos de trabalho no campo, mas cigarros eletrônicos da BAT são fabricados na China e, se usarem a nicotina extraída do tabaco brasileiro, demandarão a produção de menos de 100 agricultores
Por que importa?
- BAT promete quase 13 mil empregos no campo se vape for liberado, mas análise do Joio indica que número real pode ficar abaixo de 100 produtores rurais.
- No Paraguai, a BAT importa sua marca de vapes dos mesmos fabricantes chineses que produzem os dispositivos ilegais que inundam o mercado brasileiro, segundo dados obtidos junto à ImportGenius.
- Cigarros eletrônicos da multinacional são produzidos na China, mas empresa não explica como iria fabricá-los no país e gerar empregos aqui.
Do alto de uma laje corporativa do edifício de alto padrão Carlton Tower, localizada em Brasília e com vista para os prédios-sede dos principais bancos públicos do país, o lobista da indústria do tabaco Lauro Anhezini Júnior listava números grandiosos para os deputados estaduais gaúchos que o assistiam pela internet em uma sessão híbrida da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul em outubro de 2024.
Cerca de R$ 1,4 bilhão em faturamento, 12.950 empregos gerados no campo e pelo menos R$ 70 milhões a mais no bolso de produtores rurais se vapes, proibidos no país desde 2009 pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), fossem liberados. O Brasil, prometeu o executivo, tinha potencial para virar até mesmo exportador de cigarros eletrônicos, o que dobraria os números.
“Está provado de forma econômica que a regulamentação de cigarros eletrônicos no Brasil seria amplamente favorável à fumicultura nacional, gerando uma massa de empregos, renda, faturamento relevante a este setor”, disse Anhezini, que é diretor da Associação Brasileira da Indústria do Fumo (Abifumo) e da British American Tobacco (BAT), ex-Souza Cruz, fabricante de marcas como Kent e Lucky Strike, além das extintas Derby, Free e Carlton. Os dados vinham de um estudo da Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais (FIEMG) encomendado pela própria BAT.
O avanço contradiz preocupações de organizações ligadas à saúde, que ressaltam que vapes impulsionam a dependência da nicotina, principalmente entre os mais jovens, por seu apelo às novas gerações. Em 2024, uma carta assinada por 80 entidades médicas se posicionou contra a liberação no Brasil. “O perfil de usuários desses dispositivos é diferente do fumante clássico: é uma população de alta escolaridade, renda, concentrada em meninas, adolescentes e jovens”, diz o epidemiologista André Szklo, do Instituto Nacional do Câncer (Inca). “[Se for liberado] vamos trazer um perfil a mais para a epidemia do tabagismo no Brasil.”
Anhezini foi à sessão da assembleia do Rio Grande do Sul, que havia criado uma “Subcomissão da Regulamentação dos Dispositivos Eletrônicos para Fumar e Proteção da Cadeia Produtiva do Tabaco” com apoio do setor, para explicar como vapes poderiam turbinar a combalida economia gaúcha. Por isso, os bilhões listados pelo executivo brilhavam aos olhos dos políticos do estado, que sedia unidades de multinacionais fumageiras em municípios de seu interior, como Santa Cruz do Sul e Venâncio Aires. Além disso, também concentra cerca de 70 mil fumicultores, quase metade dos mais de 138 mil produtores de fumo do país.

Existem 138 mil famílias fumicultoras no Sul do Brasil, de acordo com a Afubra (Foto: Isabelle Rieger/O Joio e O Trigo)
O que Anhezini não disse aos políticos gaúchos, contudo, é que se a multinacional decidisse abastecer esses vapes com nicotina extraída do tabaco brasileiro, o número de produtores rurais para suprir este mercado seria mínimo: apenas 93 famílias fumicultoras, segundo análise do Joio – e não os quase 12,9 mil empregos prometidos aos deputados gaúchos.
Com base em documentos internos da fabricante norte-americana de cigarros eletrônicos JUUL, que incluem cálculos da demanda de tabaco necessária para se produzir a nicotina líquida da marca, a reportagem pôde calcular que menos de 100 produtores rurais seriam capazes de abastecer a demanda projetada pela BAT para um cenário de legalização dos dispositivos no país. Isso se a multinacional usar o fumo brasileiro para a sua nicotina – em produtos vendidos em outros continentes, a empresa usa sobretudo fornecedores indianos.
Além disso, os cigarros eletrônicos da BAT vendidos na América Latina são fabricados na China pelas mesmas companhias que produzem as marcas ilegais que abastecem o mercado ilícito brasileiro. Ou seja, não trariam empregos para o país.
Para chegar neste número, a reportagem partiu das projeções de consumo da FIEMG e aplicou a mesma fórmula usada pela JUUL em seus cálculos internos. Em seguida, usamos dados da Associação dos Fumicultores do Brasil (Afubra) para estimar quantos fumicultores seriam capazes de satisfazer a demanda por nicotina líquida de vapes do mesmo padrão da VUSE, a marca global de cigarros eletrônicos da BAT.
Ao todo, bastariam 427 toneladas de tabaco do tipo virgínia – produção que 93 fumicultores, na média, dão conta – para abastecer as 12,85 toneladas de nicotina pura demandadas pelo consumo estimado pela FIEMG, de cerca de 63 milhões de vapes anuais.
Na prática, um único produtor rural poderia fornecer o insumo necessário para abastecer 676 mil cigarros eletrônicos, o equivalente ao consumo anual de 37,5 mil fumantes. Você pode consultar a íntegra dos cálculos do Joio aqui.

A mão de obra é tão baixa porque, para se produzir nicotina pura, o teor da substância na folha é extraído e purificado. Em seguida, ela é misturada a químicos e sabores que abastecem os líquidos desses dispositivos, enquanto no cigarro comum muito disso se perde na combustão. Ao todo, em uma comparação direta entre um pod e um maço, eletrônicos contêm de 8 a 20 vezes menos nicotina bruta, indicam as estimativas da JUUL revisadas pelo Joio. Se o índice levar em conta folhas de tabaco, o vape precisa de até 24 vezes menos. Isso não significa que eles sejam menos nocivos.
A estimativa da reportagem também supõe que o tabaco usado nesses produtos seria cultivado por fumicultores dedicados exclusivamente à produção de nicotina para vapes, nos moldes dos planos da multinacional Universal Leaf de usar fumicultores para abastecer a JUUL com nicotina brasileira. Os documentos da empresa norte-americana foram obtidos pela reportagem por meio do site Truth Tobacco Industry Documents, da Universidade da Califórnia, que reúne arquivos reunidos por meio de ações judiciais norte-americanas.
Outra possibilidade, em caso de liberação dos dispositivos, seria a BAT usar nicotina extraída das sobras do processamento do fumo, um insumo com menor teor dessa substância, mas que é muitíssimo mais barato, o mesmo modelo seguido por indústrias indianas. Por lá, fabricantes de nicotina compram pó de tabaco bidi – um fumo típico do país – diretamente das processadoras da planta. Por isso, neste modelo, a maior parte dos lucros fica com as indústrias e não necessariamente é repassado aos produtores rurais.
Apesar de já serem desanimadores para o campo, esses números de empregos podem estar superestimados. Isso porque a FIEMG parte de um mundo “ideal” em que o contrabando de vapes deixa de existir. “Este estudo pressupõe que a demanda potencial para cigarros eletrônicos – quando seu consumo for legalizado – será totalmente atendida pela indústria lícita do tabaco”, diz o levantamento da federação de indústrias mineira em sua seção de “limitações”. Uma apresentação com dados do estudo foi disponibilizada pela BAT à reportagem.
“Eles supõem vendas que não sei se um produto legal vai ter”, avalia o economista Roberto Iglesias, consultor da Organização Mundial de Saúde (OMS) e especialista em comércio ilícito de tabaco, que avaliou os slides da BAT/FIEMG a pedido do Joio. “Também falam de empregos e massa salarial, mas escondida está a ideia de que nasceria aqui um novo polo de produção de vapes, sendo que o que eles fariam é importar peças chinesas e montá-los aqui.”
Os cálculos da empresa estimam que cada cigarro eletrônico “legal” seria vendido a R$ 150, mas ignora que vapes ilícitos custam até R$ 6 cada no atacado do Paraguai, que é a origem da maior parte do contrabando de cigarros no país, tanto comuns como eletrônicos. Quando chegam aqui, no entanto, a maior parte dos dispositivos é vendida em faixas que superam os R$ 100. Por isso, uma liberação do produto também pode impulsionar a venda de vapes ilegais mais baratos, e expandir o consumo para além da classe média alta. “Uma possibilidade é surgir uma guerra de preços”, diz Iglesias.
Ao Joio, a BAT preferiu não responder nenhuma das nossas dúvidas sobre o levantamento e indicou que quaisquer perguntas deveriam ser direcionadas à FIEMG. A entidade afirmou em nota à reportagem que “a abordagem utilizada no estudo parte de cenários econômicos que buscam avaliar os efeitos diretos e indiretos na economia como um todo”. “Trata-se, portanto, de uma análise em nível macro, sem entrar em dados específicos de produção por empresa”, disse.
Na fachada de sua unidade em Santa Cruz do Sul (RS), em meio a um logotipo enfeitado por um arco-íris, BAT diz estar “construindo uma trajetória de pioneirismo por um amanhã melhor” (Fotos: Isabelle Rieger/O Joio e O Trigo)
Desde 2023, a BAT apresentou pelo menos duas versões diferentes do estudo com promessas distintas para públicos diferentes. Primeiro, vapes criariam um mercado de R$ 7,5 bilhões: a conta estimou que 3,3 milhões de brasileiros iriam consumir, cada um, 15 dispositivos ao ano. Essa versão foi repetida em eventos patrocinados pela indústria de cigarros na imprensa brasileira. Em abril de 2024, a simulação subiu para 3,5 milhões de pessoas, 18 vapes anuais e R$ 10,5 bilhões de faturamento.
Os números da multinacional, contudo, modelam a demanda de vapes como se sua produção fosse semelhante à de cigarros comuns. “Os impactos econômicos e sociais analisados estão diretamente e indiretamente ligados ao aumento da produção do setor de produtos de fumo, destinado a atender à demanda potencial por cigarros eletrônicos”, explica a apresentação do estudo.
No lugar de filtro, papel e fumo picado como nos produtos convencionais, dispositivos eletrônicos para fumar (DEFs) usam baterias, bobinas e líquidos com nicotina, extraída do fumo ou sintetizada em laboratório em unidades fabris de padrão farmacêutico, que é misturada a uma série de químicos e sabores.
A maioria dessas fábricas está justamente em Shenzhen, na China, um polo industrial de produção de eletrônicos. No Brasil, as marcas da BAT, como Kent e Lucky Strike, usam tabaco plantado no Sul do país e são fabricadas em sua indústria sediada em Uberlândia, Minas Gerais – uma cadeia produtiva bem diferente.
Na mesma sessão híbrida da AL-RS, o diretor da Abifumo e da BAT, Lauro Anhezini Júnior, sugeriu que a proibição de cigarros eletrônicos cria um cenário de “descontrole sanitário” no país. “Ninguém sabe o que está sendo consumido, as pessoas não têm ideia do conteúdo do produto ou padrões de segurança”, disse. “Quando você não tem uma regra, uma padronização do produto, uma padronização sanitária, surge um problema de saúde pública.”
Os slides do lobista mostravam notícias brasileiras de explosões de vapes e relatos de jovens com o ‘óleo’ dos dispositivos nos pulmões. Tudo culpa do descontrole sanitário de vapes contrabandeados, ele sugeria.
As mesmas fábricas chinesas que produzem algumas das marcas ilegais mais populares do país, no entanto, também fabricam o VUSE, o vape da BAT. Ou seja, os produtos ilegais e “sem controle sanitário” que inundam o mercado brasileiro têm a mesma origem que os comercializados pela multinacional na América Latina. É o caso, por exemplo, da Ignite, uma das principais marcas ilícitas vendidas no Brasil, que divide os mesmos fornecedores que a VUSE, apurou o Joio.
A empresa de cigarros eletrônicos ilícitos é tão bem estabelecida no país que, apesar de não vender vapes oficialmente, já lançou marcas de bebidas e roupas, e tem o cantor Gusttavo Lima como garoto-propaganda.
Para descobrir isso, a reportagem adquiriu um dispositivo Ignite em uma loja no centro de Porto Alegre, confirmou que seu lote era original na página oficial da marca (sim, os DEFs ilegais vendidos no Brasil vêm com códigos anti-pirataria) e, em seguida, checou as informações de sua fabricante na embalagem.
Hoje, a produção da maioria dos cigarros eletrônicos é terceirizada para chineses. No caso da Ignite, o “produto original” é uma versão genérica (white label) em que a empresa só insere a sua marca. Neste caso, esta indústria é a VapeEZ Technology, sediada em Shenzhen, cidade chinesa vizinha a Hong Kong tida como a “capital global dos vapes”.
Em seguida, o Joio rastreou quaisquer arquivos disponíveis online que mencionassem a VapeEZ e a Ignite em um mesmo documento. A reportagem chegou a um documento de “treinamento” interno de 2025, da subsidiária russa da marca, que detalha sua cadeia de produção. “O líquido [da Ignite] contém sabores e nicotina de grandes fabricantes globais, que têm entre seus clientes a British American Tobacco”, diz o arquivo, que destaca as indústrias chinesas VapeEZ Technology e Smoore Technology como fornecedoras dos vapes da Ignite.
A reportagem decidiu então consultar dados aduaneiros do Paraguai – a principal rota de vapes ilegais para o Brasil – que incluíssem a British American Tobacco, a VapeEZ e a Smoore. Os dados foram fornecidos ao Joio pela plataforma de inteligência de dados em comércio exterior ImportGenius. Segundo esses números, a BAT importou ao país vizinho cerca de 60 mil cigarros eletrônicos da VapeEZ em 2024 e outros 300 mil cigarros eletrônicos da Smoore em 2023.
No mesmo período, entre 2021 e 2023, a Smoore também vendeu aos paraguaios milhares de cigarros eletrônicos (ou partes deles para montagem do país) das marcas Nikbar e Vaporesso, que depois da Ignite estão entre as mais populares do mercado ilegal brasileiro.
Além da BAT, mostram os dados da ImportGenius, uma das principais importadoras da companhia chinesa no país é a distribuidora de vapes Agatres, que está entre as responsáveis pelo marketing e contrabando de cigarros eletrônicos ao Brasil, segundo reportagem do Núcleo de 2024. Já a VapeEZ não vendeu os dispositivos para outras empresas fora a BAT, segundo os dados revisados pelo Joio.

No portal de entrada de Santa Cruz do Sul, a “capital do fumo” no Brasil, a logomarca da BAT (Foto: Isabelle Rieger/O Joio e O Trigo)
À reportagem, a multinacional de tabaco admitiu a relação comercial com a Smoore. “A BAT adquire seus produtos de vaporização de diferentes fornecedores, incluindo a Shenzhen Smoore Technology Limited (Smoore) e a operação entre a BAT e a Smoore segue processos independentes das atividades que a companhia [chinesa] mantém com outros clientes”, disse a empresa em nota. “A BAT informa que não possui qualquer vínculo com a VapeEZ e nunca manteve relacionamento comercial com a empresa”, afirmou.
O Joio, contudo, encaminhou um e-mail a uma das empresas chinesas e mencionou ter identificado dados alfandegários que indicavam exportações da companhia à multinacional britânica. “VapeEZ foca principalmente em produtos ODM [ou seja, ela fabrica produtos sem logotipos e licencia esse uso aos outros] para muitas empresas de marca, como a Ignite”, respondeu uma representante de seu time de vendas. “Além disso, estamos em comunicação com a BAT em alguns novos projetos.”
Um estudo recente do Instituto Nacional do Câncer calculou que, para cada R$ 1 de lucro da indústria do tabaco com o cigarro comum, o país gasta um total de R$ 5 com os custos diretos e indiretos do tabagismo, ligados ao adoecimento, à perda de produtividade e à morte. Ainda não há cálculos que estimem os impactos negativos de vapes à saúde pública, contudo, a tendência é que impulsionem uma retomada no uso de cigarros comuns. “Você vai ter uma parcela da população que vai começar a usar o dispositivo eletrônico e, a partir do momento que a dependência se instaura, ela vai migrar para o produto mais barato, que é o convencional”, diz André Szklo, do Inca.
Leia a íntegra das respostas da BAT encaminhadas ao Joio
A BAT informa que não possui qualquer vínculo com a VapeEZ e nunca manteve relacionamento comercial com a empresa.
A BAT adquire seus produtos de vaporização de diferentes fornecedores, incluindo a Shenzhen Smoore Technology Limited (Smoore) e a operação entre a BAT e a Smoore segue processos independentes das atividades que a companhia mantém com outros clientes.
Nossos dispositivos de vaporização passam por rigorosos testes de qualidade.
Cada produto é submetido a mais de 1.000 horas de testes, assegurando excelência em desempenho e segurança.
Além disso, nossos dispositivos são testados e certificados por laboratórios independentes, garantindo que cada aparelho atenda aos mais elevados padrões e esteja em conformidade com a legislação local antes de chegar aos consumidores.